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A beleza das nossas rachaduras queer

  • Writer: Desvvio Comunidade
    Desvvio Comunidade
  • May 25
  • 4 min read

Updated: Jun 5

Existe, no Japão, uma técnica ancestral chamada kintsugi. A lógica é simples: quando uma cerâmica se quebra, ela não é descartada nem remendada às escondidas. Suas rachaduras são coladas com uma laca especial misturada a pó de ouro. O reparo se torna visível e valorizado. A peça não volta a ser o que era, mas se transforma em algo novo, mais interessante, mais honesto sobre a sua história. Não existe a ilusão de perfeição — existe beleza no que sobreviveu ao impacto.


Não por acaso, essa imagem tem ganhado espaço em narrativas queer. O escritor Greg, no ensaio Human Kintsugi: Our Brokenness Is Our Beauty, descreve como se assumir gay o obrigou a revisitar feridas que ele preferia não ver: medos, vergonhas, solidão. Em vez de tentar apagá-las, aprendeu a vê-las como parte de sua construção.

Em Singapura, a Free Community Church criou a Kintsugi Series, um ciclo de encontros para a comunidade LGBTQIA+ discutir como as rachaduras emocionais, familiares e sociais podem ser incorporadas de forma consciente — não como troféus de sofrimento, mas como sinais de presença e resistência.


Sadie Mae, poeta e mulher trans lésbica, escreveu Kintsugi, um poema em que suas cicatrizes não são ocultadas nem romantizadas, mas reconhecidas como marcas de quem passou por processos de reconstrução.


Não estamos falando de metáforas vazias, mas de um convite à honestidade radical. Existe um enorme custo em tentar viver como se nada tivesse nos afetado. A tentativa constante de parecer inabalável, “resolvido”, cansa. E ainda que o mundo nos treine para esconder nossas falhas, um dia o corpo cobra, o afeto trava, e o verniz emocional simplesmente não segura mais.


Agora, sejamos realistas: por mais que o kintsugi seja uma imagem bela, a gente não tem a tradição de colar cerâmicas com ouro no dia a dia. No Brasil, onde as coisas se quebram com frequência, e nem sempre sobra laca japonesa pra dar conta, talvez uma metáfora mais honesta e calorosa seja a da panela de barro. Sim, aquela mesma, de cozinha simples, feita à mão, que vai pro fogo e entrega sabor. Não é peça de museu. É de uso. É do cotidiano. Vai pro calor do fogão, pro peso do preparo, e claro, eventualmente racha. Mas ninguém em sã consciência joga uma panela dessas fora só porque trincou. Quem sabe do valor dela reforça, ajusta, adapta. Porque o que ela entrega — memória, sabor, história — não se compra novo. Não se simula em peça de inox reluzente.


E sejamos sinceros: nós também rachamos. Às vezes pelas grandes tragédias... violência, expulsão, rejeição familiar. Mas muito frequentemente pelo acúmulo das microagressões diárias, aquelas pequenas fissuras que vão desgastando a superfície. A piada no trabalho. O afeto policiado em público. O cuidado constante para não “incomodar” com a própria presença. O eterno esforço de se explicar. Aos poucos, isso vai nos moldando num corpo que se vigia, numa vida que se edita. E é aí que nos tornamos, sem querer, panelas trincadas que fingem estar intactas — até que não dá mais.


Porque chega uma hora em que esconder cansa mais do que expor. Não se trata de sair gritando para o mundo inteiro tudo o que sentimos, mas de construir uma vida onde não seja preciso negar partes fundamentais de quem somos. Reconhecer a rachadura é o primeiro passo para não ser mais refém dela. E talvez o mais libertador.


Assumir nossas marcas pode se dar de muitas formas. Pode ser conversar sobre ansiedade sem medo de parecer frágil. Pode ser admitir vergonha do próprio corpo, ou a dificuldade de se abrir para o amor depois de experiências ruins. Pode ser encerrar uma relação que esvaziou, ou recomeçar do zero numa nova cidade, numa nova idade. Pode ser escrever, criar, buscar redes de afeto reais. Pode ser simplesmente parar de fingir. Há feridas que não fecham completamente, mas que podem ser integradas. Viver com elas é possível, e necessário.


Cada um encontra uma forma de se manter inteiro com tantas rachaduras. Para uns é afeto, para outros é espiritualidade, política, arte, corpo. Não importa qual seja — o que importa é o gesto de não se abandonar. De não tentar voltar a um ideal de perfeição que nunca existiu. Porque a verdade é que a inteireza só é possível se acolhermos também o que rachou.


Somos, sim, como essas panelas de barro. Marcadas pelo uso, alteradas pelo tempo. Mas vivas. O que carregamos não nos diminui, nos expande. Não somos frágeis por termos quebrado; somos inteiros porque escolhemos nos reconstruir. E se há algo de belo nisso, não é apesar das rachaduras — é justamente nelas que essa beleza nasce. Uma beleza que não se explica em superfícies lisas, mas que se reconhece no sabor do tempero que vem das marcas do caminho.


E se isso incomoda alguém… que fique sem jantar. A mesa continua posta.


Referências citadas:

  1. Greg. Human Kintsugi: Our Brokenness Is Our Beauty — https://greg-24412.medium.com/human-kintsugi-our-brokeness-is-our-beauty-3db84079fd22

  2. Free Community Church. Kintsugi Series — https://freecomchurch.org/resources/kintsugi-series

  3. Sadie Mae. Kintsugi (poema) — https://tribunodelpueblo.org/kintsugi-lgbtq-poem

 
 
 

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