A verdadeira ‘cura gay’: a cultura pop como terapia queer
- Desvvio Comunidade
- May 25
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Updated: Jun 6
No livro A Arte como Terapia, Alain de Botton e John Armstrong lembram que a arte não existe apenas para ser contemplada em silêncio respeitoso em salas de museu. A arte, dizem eles, tem o poder de alimentar a mente, oferecer consolo em momentos de ruptura e organizar emoções que muitas vezes não sabemos nomear. Não se trata apenas de beleza ou erudição, nem de passatempo intelectual, mas de algo mais essencial: uma ferramenta para lidar com as complexidades da experiência humana.

E essa ferramenta não está restrita aos circuitos da chamada alta cultura. Cultura popular também é arte. A ideia de que só ela tem valor é um mito que sempre serviu a quem ocupou o centro das narrativas. Na prática, os espaços onde a arte cumpre seu papel mais vital nem sempre têm moldura ou pedestal. Muitas vezes, ela está no cotidiano, nos gestos e escolhas que ajudam a sustentar a vida quando o mundo pesa. Para muita gente queer, essa força pulsa justamente na cultura pop. Está na playlist da Anitta enquanto se arruma para sair, no show da Gaga em Copacabana, na pista de uma balada Drag. É nesses espaços que a arte se torna legítima de expressão.
Quando se observa a história queer, torna-se evidente por que a música pop e as grandes Divas sempre ocuparam um lugar tão importante. Manifestações artísticas como essas se transformaram, ao longo do tempo, em territórios onde se pôde inventar outros modos de ser e sentir.
Não é por acaso que Madonna, nos anos 80, trouxe para o mainstream pautas e imagens da cultura gay, em um momento de luta contra o HIV/AIDS e de forte repressão. Não é por acaso que Lady Gaga compôs Born This Way, um hino de autoafirmação que ainda hoje arrepia pistas de dança pelo mundo. E não é por acaso que a arte Drag, com raízes em comunidades trans, negras e latinas dos Estados Unidos, floresceu como linguagem de invenção e liberdade. Os ballrooms de Nova York não eram apenas festas. Eram zonas de cuidado e de criação de novas formas de presença.
E isso não acontece apenas no eixo pop anglo-americano. No episódio sobre Copla do podcast Sabor a Queer, com Carvento e Roberto Aragón, fica claro como essa música tradicional espanhola, antes associada a uma visão conservadora e heteronormativa, foi ressignificada. A Copla, com suas letras carregadas de dor, dramas e personagens à margem, tornou-se um espelho emocional para muitas vivências queer. Hoje, não é raro ver performances Drag reinterpretando Coplas ou festas em que o gênero é apropriado de maneira criativa, criando novas camadas de sentido. O que não foi feito para nós passa a ser nosso.
Esse movimento de apropriação se repete em muitos outros contextos. No Tecno-brega e no Brega Funk do Norte e Nordeste brasileiros, por exemplo, corpos dissidentes ocupam as pistas e reinventam esses espaços com potência e desejo. E as cenas de Vogue e Ballroom, que crescem em diversas cidades da América Latina, de Santiago a Cidade do México, mostram como a cultura queer continua criando zonas de resistência e liberdade. Lugares onde antes havia silêncio, hoje se enchem de voz, corpo e batida.
Nessas expressões artísticas, a arte não é apenas entretenimento: é terapia. É uma forma de cuidado e de cura, entendida aqui em um sentido simbólico. Não se trata de minimizar ou substituir a importância da terapia clínica, que segue sendo fundamental para muitas pessoas. Mas de reconhecer que existem também essas outras formas de sustentar a saúde emocional, esses outros espaços de respiro e reconstrução que a cultura oferece.
Por isso, quando alguém desdenha um show como o da Lady Gaga em Copacabana, quando critica quem frequenta uma balada queer ou ironiza a devoção de gays às suas Divas Pop, o que falta ali é justamente essa compreensão. Para quem vem das margens, aquilo que se dança em uma pista, aquilo que se canta em um show lotado ou que se performa em um palco não é banalidade. É sobrevivência, autocuidado e terapia coletiva.
Quem não entende isso talvez não compreenda o papel vital que a arte ocupa em nossas vidas. Mas nós compreendemos. E seguimos criando, consumindo e nos nutrindo dela.
Divas Pop são terapia. Balada gay é terapia. Drag é terapia. E tudo isso é cultura viva, pulsante e legítima. Que a gente nunca esqueça.
Referências citadas:
A Arte como Terapia, Alain de Botton e John Armstrong
Podcast Sabor a Queer — episódio sobre Copla com Carvento e Roberto Aragón
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